Nova Lisboa – Délio Jasse
6 Sep, 2018 - 4 Nov, 2018
NOVA LISBOA – A IMAGEM VERSUS A AMNÉSIA COLECTIVA.
Nas minhas viagens por Angola aconteceu frequentemente encontrar indivíduos que rejeitavam ser fotografados, alegando que não permitiriam que a sua alma fosse roubada pela lente da câmara. Talvez por desconhecerem o destino ou o propósito para as imagens, ou pela frieza intrínseca de quem fotografa, para certas culturas a fotografia nunca será um simples meio que nos possibilita congelar o instante, é-lhe também conferida uma dimensão esotérica.
A hipótese da câmara fotográfica ser um eficiente extrator de almas não foi ainda cientificamente comprovada. No entanto, estamos cientes da sua capacidade de ressuscitar memórias enterradas pela perpétua passagem do tempo.
O trabalho que o artista Délio Jasse tem realizado em torno da fotografia e dos documentos herdados do período colonial, reanima imagens que estavam remetidas a um arquivo morto, dispersas em feiras ou, simplesmente, jogadas no lixo. Ao apresentar este trabalho no espaço público, Jasse concede a estes artefactos da memória uma segunda vida. No seu processo de criação, o artista fotografa as imagens originais impressas sobre papel, transferindo novamente para o negativo, para lhes atribuir um novo suporte, uma nova dimensão. A luz do ampliador volta a despertar os fantasmas de outrora enquanto a imagem submerge no papel de algodão, que se converte no corpo de acolhimento para as almas roubadas há mais de meio século.
As fotografias sobre as quais Jasse intervem e que configuram grande parte da exposição “Nova Lisboa”, foram compradas na Feira da Ladra, em Lisboa. São retratos tirados na cidade do Huambo, batizada em 1928 – durante o regime colonial – como Nova Lisboa, tornando-se o mais importante bastião da expansão colonial no planalto central. Nova Lisboa é mais uma cidade cuja origem reside num sonho ambicioso tornado realidade, de transformar Angola numa “província” (e já não colónia) portuguesa ultramarina. As casas e edifícios desta cidade, tal como muitas cidades do ex-império luso em África, demonstram, pela sua solidez e imponência, a clara intenção de consolidar intemporais assentamentos coloniais.
Estas fotografias permitem visualizar um período da história que moldou, profunda e permanentemente, a nossa contemporaneidade, e que sentimos grande relutância em abordar. Embora representem uma época na qual a fotografia era exclusiva de uma classe dominante, uma dádiva a que poucos acediam, no processo criativo de Jasse estes retratos são um importante legado. Um legado que vai além da sua estética apelativa, pois permite-nos reunir os estilhaços da história hostil de um país, onde os sucessivos episódios traumáticos causaram um apagamento irreversível da memória.
Na obra de Jasse, a relação entre a fotografia e a memória é um dos aspetos predominantes. O artista apropria-se de um olhar alheio, manipulando-o esteticamente sem que a sua narrativa visual seja completamente alterada, mas atraindo o nosso olhar para uma armadilha que nos obriga a levantar questões complexas e, por vezes, perturbadoras.
Observando os protagonistas nestes retratos, somos confrontados com a reminiscência de um processo de colonização que edificou uma sociedade alicerçada na segregação racial, contrariando a fantasiosa teoria luso-tropicalista que apregoava a existência do bom-colono. Os grafismos retirados de documentos e sobrepostos nas imagens com cores berrantes com a técnica de serigrafia, remete-nos para o conceito e estética da arte pop. Um paradoxo, pois este grafismo provém de documentos que permitiam estabelecer e tornar funcional uma sociedade segregada. A segregação faz com que, a partir destes retratos, nasçam sentimentos contraditórios, entre a deleitável nostalgia de uma minoria privilegiada e o repúdio da comunidade que foi brutalmente explorada. Toda a história possui múltiplas interpretações, tal como uma obra de arte, e a obra de Jasse deixa em aberto as várias leituras que possam surgir do espectador, uma abordagem nada pretensiosa.
A magia no trabalho de Jasse acontece sobretudo enquanto a luz do ampliador no seu estúdio permanece acesa, no momento em que as imagens gradualmente vêm à superfície do papel. A obra, depois de realizada, poderá voltar ou não a ser um arquivo, mas nunca morto. O questionamento premente do espectador jamais devolverá o descanso destas almas que, mais uma vez, foram furtadas. Cada um de nós poderá contextualizar na sua perspetiva pessoal e íntima. Contudo, não podemos negar o seu contributo para a memória coletiva e perceber o mimetismo em relação ao colonialismo na sociedade atual, até mesmo no deplorável comportamento de quem hoje exerce o poder. Há quem prefira viver mergulhado no revivalismo dos discursos coloniais e pós-coloniais, mas os fenómenos sociais hoje tornaram-se extremamente complexos para dispensarem a contribuição da História, uma contribuição vital que só será conseguida depois de nos despirmos dos nossos medos e preconceitos.
Kiluanji Kia Henda, 2018