Memórias De Um Rio Envenenado
23 Nov, 2023 - 23 Dec, 2023
Jahmek Contemporary Art
De terça à sexta-feira – 12h às 19h
Sábados – 11h às 19h
A exposição de Kiluanji Kia Henda e Felix Shumba, Memórias de um Rio Envenenado, é a história multimídia da ascensão (e da profetizada queda) do extrativismo, refletida através das lentes prismáticas de um rio.
Um rio é um corpo de água que une outros corpos: plantas, animais e humanos. Um rio é um corpo em viagem: ao longo de milénios, dança até ao mar, carregando no seu rastro uma procissão de sementes e de terra aluvial. Os seus filhos – ecologias e culturas – reúnem-se, crescem e florescem no seu abraço.
Se o cuidado que um rio manifesta ao mundo for retribuído, poderá viver uma vida longa e saudável. Ao longo da sua vida, o rio vê coisas, aprende coisas e transmite o seu conhecimento a quem quiser ouvir. A história de um rio é também a nossa história; a música que canta também é a nossa. Poderíamos dizer que o passado de um rio é uma lente para o nosso futuro e que a morte de um rio prenuncia a nossa própria morte.
O rio lembra quando o extrativismo chegou. Um dia, há muitos anos, sentiu o rastro de enormes navios contra a sua corrente e ficou inquieto. Com o tempo, partilhou arrepios com as florestas derrubadas, recusou a paleta esbranquiçada da agricultura monocromática, recuou diante do sabor forte e venenoso dos resíduos químicos e lamentou profundamente o desaparecimento do seu povo: pessoas vendidas como escravas, assassinadas por doenças, trabalhando até à morte nas minas e separadas dos seus fluxos nutritivos pela ruptura com as suas culturas. Oh, o que assistiu. Oh, o que suportou.
O rio soube, desde o primeiro momento, que o extrativismo era mais do que a remoção sistemática de recursos minerais do corpo da Terra: era uma nova cosmologia, uma visão de mundo, um modo de ser, imposto pelos colonizadores europeus a África e ao mundo. Os agentes do extrativismo afirmam que a vida pode ser cumulativa, mas primeiro deve ser conquistada e dividida em parcelas de propriedade privada. E assim, o extrativismo segrega os seres humanos dos nossos corpos ecológicos mais amplos e segrega os humanos negros do corpo da humanidade. Os filhos do rio passam a ver o rio como um outro, como um objeto.
Através de tudo, o rio observa. Como as fronteiras traçadas de longe mantêm a existência na sua mira. Como os lugares outrora conhecidos pelas suas histórias mais-do-que-humanas são renomeados pelos seus conquistadores e reorganizados de acordo com o seu valor de mercado. Como os depósitos de petróleo negro e minerais raros são unidos em geometrias euclidianas e constelações misteriosas são formadas a partir de buracos perfurados na terra. Como os rios e os povos são divididos contra si por grades cartesianas e as comunidades são transformadas em forças de trabalho. Como os humanos, cegos por jóias, fixam o olhar nos diamantes nas solas dos seus sapatos esquecendo-se de fixar os sonhos nas estrelas no céu. Como os reflexos ribeirinhos das estrelas são obstruídos por poluentes indústrias e os humanos passam a esquecer o rio, esquecer as estrelas e esquecer-se de si mesmos.
À medida que serpenteia aqui e ali através do tempo e do espaço, o rio encontra os seus filhos perdidos, mutantes, quase irreconhecíveis. Nocturnal Bodies relembra uma época em que o rio encontrou uma manada de cavalos. Os seus olhos ardem com os traços fosforescentes de uma substância química que descascou a sua carne até aos ossos. A sua condição macilenta encontra eco na Terra Esfolada – o corpo desgastado da terra. O útero da Terra – o lar dos nossos antepassados – está exposto e tornou-se estéril. O útero torna-se a Boca do Inferno. Através da sua dor, a terra vermelha sorri com dentes de ouro.
O rio lembra como, na antiguidade humana, os dentes de ouro foram concebidos como solução médica para a podridão dentária. Uma vez extraído o dente podre da boca, o ouro extraído da terra era implantado no seu lugar. O ouro foi escolhido pela sua pureza: nunca se deixaria corroer, nunca se iria corromper, nem libertar toxinas na corrente sanguínea de quem o usasse. No entanto, são necessários produtos químicos venenosos para isolar o ouro puro do minério. O cianeto penetra no solo, na água e, daí, em todos os nossos corpos.
Um dia, um demónio emerge de Charred Still Life (natureza morta carbonizada) de árvores derrubadas e diz ao rio: Enquanto cavo na escuridão da terra, posso ver o brilho da morte nos teus olhos. Atordoado e em transe, espectros do colonialismo português passam flutuando na sua mente. Nas minas, os diamantes são os únicos inocentes. Roubar um diamante acarreta a mesma pena que assassinar, e o ladrão que luta para alimentar os filhos é caçado por desporto. O trabalhador com a respiração custosa da tuberculose cravejada de diamantes é algo externo. As criaturas apanhadas no fogo cruzado são danos colaterais. A propaganda extractivista diz-nos que os diamantes são para sempre. Mas as espécies da Terra, mantidas na mira do atirador de elite de uma Diamond Cut Life, enfrentam a extinção.
O rio observa os fantasmas dos seus filhos reunirem os restos mortais dos seus parentes não humanos, enchem-nos de formaldeído e compõem-los em réplicas de paisagens destruídas enjauladas em vidro. Será isso a sombra de tristeza nos olhos de vidro do pensativo búfalo? Esse medo está congelado no olhar da outrora poderosa chita? Ou são as nossas próprias almas – os nossos próprios futuros – que aí vemos refletidos? Certamente, não encontramos consolo na ideia de que o nosso brilho eterno possa um dia embelezar os túmulos de vidro dos nossos restos mortais.
À medida que o rio serpenteia em direção ao horizonte, oprimido por séculos de substâncias tóxicas, lixo e memórias, o seu ritmo torna-se lento. Cansa-se desta velha história. O feitiço da sereia da Terra torna-se exaustivo. O rio remete-nos ao Catálogo de plantas carnívoras e suas presas, que nos lembra que a Terra treinou os mais profundos filos – guerreiros do reino das plantas – para limar os seus dentes fibrosos contra os seus agressores. Uma Restless Landscape (paisagem agitada), instável e arruinada pelo desenvolvimento, é reanimada com uma energia vigarista; árvores meio cortadas empoleiram-se como uma população à beira da revolta. Em tempos as florestas ensinaram os nossos ancestrais a ficarem alerta entre as coroas das árvores, para atacar os traficantes de pessoas escravizadas que se escondem. A Terra é um arquivo de estratégias contraofensivas.
Desde o seu leito de morte, o rio envenenado relembra-nos uma época anterior ao extrativismo, uma época em que os seus filhos acompanhavam-no em rituais de cuidado e de gratidão. O rio chama por eles – por nós – através das marés do tempo. Se não se lembra de nada, lembre-se disto: a Terra defender-se-á por todos os meios necessários. Espera que nos juntemos a ela na resistência.
Imani Jacqueline Brown