Concreto Blues – Kiluanji Kia Henda
28 Feb, 2019 - 26 May, 2019
Kiluanji Kia Henda pega-nos pela mão e mostra-nos Luanda por uma lente que nos obriga a um olhar novo, que nos leva a re-situar-nos num espaço que é simultaneamente familiar e estranho. A lente é similar ao que em literatura se chama o narrador omnisciente, de forma propositadamente simplificada aquele que conhece a história, porque ele olha para um presente-passado. Uma Luanda que se transforma, que se vem transformando nos últimos 15 anos. Uma transformação que assistimos todos com alguma esperança mas que vivemos todos com o dissabor de saber, ainda que nem sempre com vontade de ver, os seus mecanismos de exclusão e privilégio, os seus restos, humanos e não-humanos.
A série de imagens Concreto Blues obriga-nos a olhar as fachadas e as pessoas, ou vice versa, de uma cidade que se perdeu nos sonhos alienados da política, e tal como esta carrega os elementos que compõem o discurso político, desde a iconografia religiosa que tão habilmente durante a história tem sabido falar do homem sem necessariamente engajar o homem, nas palavras do artista ‘selva de betão, corações de pedra.’ Os elementos que nos remetem ao religioso, mais óbvio nos panos da obra Caos, corpos e concreto, repetem-se em outros como o peixe, os braços abertos de Cristo ou do limpador de ruas, o feixe de luz, ou serão vassouras, da vendedora que enche de cores e sons as ruas da cidade. O artista rouba a dignidade com que são apresentados os santos católicos para a partilhar com os homens e mulheres que habitam o nosso quotidiano oferecendo às suas cores, luzes e produtos lugar central. Não o faz romantizando os personagens, pelo contrário, torna visível a forma como o seu espaço é conquistado apesar do crescente concreto e do algumas vezes invisível arame farpado.
Concreto Blues é um ensaio sobre a política do pós independência, sobre os discursos esquecidos do Homem Novo. Ou se calhar sobre o Homem Novo vítima dos discursos que o confinam a uma ideia vazia, obrigado a habitar os escombros de edifícios do centro da cidade depois despejados e realojados na Sapu ou no Zango 8000 em lugares que não são lugares mas depósitos de corpos. O cidadão anónimo ao nível do contratado que sem direitos podia ser obrigado a trabalhar, deslocar-se, ser escravizado em prol de uma civilização que por definição o exclui. Mas e a fé? Essa está sempre lá e suporta o corpo quando a alma pede descanso, suporta os braços para trabalhar quando a vida é destruída por ordens superiores distantes como as leis que dizem proteger o cidadão anónimo, os iguais perante a lei.
O trabalho de Kiluanji Kia Henda acompanha de forma atenta e crítica a história de Angola e percebe-se em Concreto Blues a linha contínua desta lógica. É possível fazer um contraponto com Homem Novo, particularmente a série redefining the power, e questionar a lógica do poder numa sociedade póscolonial como a nossa. Contudo, a lente é sempre a do pós-independência, uma perspectiva que responsabiliza os seus actores e não um passado que nos vitimiza. Em Concreto Blues o artista parece desmontar a ideia de Luanda Pop, a construção romantizada de uma cidade
cosmopolita, assimilada e com uma voz. Aqui a compartimentação do espaço que o concreto exige expõe muitas vozes, muitas dores, e não só as de crescimento. A visão voo de pássaro ou omnisciente expõe-nos como cúmplices e é implacável na leitura de um quotidiano que esconde e confina tantos outros iguais a todos nós, expõe Luanda como um projecto perverso de exclusão, a acumulação primitiva de capital às expensas de um fechar de olhos.